Programa de Incentivo à Cultura recebe 102 inscrições em Canoas

Feb 2, 2024 at 2:00 PM

Por Daniela Uequed e Douglas Angeli

Boa parte dos desfiles do grupo especial do carnaval carioca que acontecem nos próximos dias de 11 e 12 de fevereiro, serão conduzidos por leituras da história, das mitologias e por adaptações de livros. Os enredos, concebidos pelos pesquisadores e carnavalescos, são ao tema dos sambas, das alegorias, fantasias e demais quesitos. Quatro escolas usarão este recurso: Portela, Grande Rio, Unidos da Tijuca e Paraíso do Tuiuti.

Já os mitos e lendas ligados a Portugal serão tema da Unidos da Tijuca, enquanto o Paraíso do Tuiuti exaltará a figura de João Cândido, líder da revolta da Chibata em 1910.

Portela

A Portela, dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga, prepara uma adaptação da obra de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, enquanto a Grande Rio, dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, baseia seu enredo no livro Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa.

Na primeira, o olhar está na história da luta contra a escravidão no Brasil tendo como  condutor o protagonismo de Luzia Mahin e de Luís Gama, mãe e filho.

A luta contra a opressão estará presente na Portela. No livro Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves se inspira na figura de Luiza Mahin, ou Kehinde, narrando a saga de sofrimento, rebelião e a busca por reencontrar seu filho, que, liberto, se tornaria o advogado abolicionista de Luís Gama. Os carnavalescos da Portela imaginaram uma carta onde o filho responde a mãe, prometendo um desfile onde a tônica será o afeto e o questionamento, como no argumento da sinopse do enredo: “Narrar essa história é como narrar a busca pelo sentido da nossa existência enquanto sujeitos negros ativos neste Brasil. Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em memória do que?”.

No ensaio técnico do domingo, dia 28, a Portela encerrou sua apresentação com a presença de mulheres que se identificavam como “Mães da Maré” e “Mães de Manguinhos”, indicando que a parte final do desfile trará a história de Kehinde para o presente.

Grande Rio

O foco está na cosmovisão tupinambá. Com o mito tupinambá de criação e recriação do mundo, baseado no livro Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa. Seu fio condutor é a onça e sua posição central nas narrativas míticas dos povos originários e sua presença no imaginário brasileiro. Os mitos também são o eixo central do enredo da Unidos da Tijuca, mas para falar de outro lado da história e do Atlântico: Portugal.

A sinopse de Um conto de fados, do carnavalesco Alexandre Louzada, apresenta o tom do enredo: “Navegar é preciso, nesse lendário lugar, onde, por mais que se procure diferir, tudo rima com mar, desbravar, invadir, glorificar. […] Dos ilês de África, contidos nas conchas do Ifá, lavar a alma, o espírito de aventureiro de sal e de sol, ao vento, percorrer no intento, contornos do Reino de Matamba até as praias de Zanzibar”.

Tijuca

Contudo, conseguirá a Tijuca executar seu desfile sem incorrer em narrativa acrítica acerca do mito de um povo predestinado a navegar e descobrir? Conseguirá demonstrar que não se trata de uma romantização dos mitos e ideologias que justificaram a dominação colonial de tantas terras e povos?

A cosmovisão tupinambá do enredo da Grande Rio nos lembra que os mares navegados pelos portugueses levaram à colonização da própria natureza, à modificação drástica dos modos de se relacionar com essa natureza e sua exploração – que se deu através da escravização de seres humanos. O que podemos antecipar é que as escolas de samba, mais uma vez, apresentarão um espetáculo que nos permitirá ler e reler o mundo, imaginar e reimaginar a vida, e pensar a vida e o mundo historicamente.

Paraíso do Tuiuti

É com viés de revisitar a história que o carnavalesco Jack Vasconcelos promete contar a vida e a luta de um herói geralmente esquecido: o gaúcho João Cândido, que comandou a revolta dos marinheiros em 1910. Passadas duas décadas da abolição da escravidão, em 1888, e da Proclamação da República, em 1889, a vida dos marinheiros negros não havia melhorado, restando baixos soldos, alimentação ruim e o castigo das chibatadas. Diante de tal cenário, estoura aquela que mais tarde, pelo livro do jornalista Edmar Morel, ficaria conhecida como a Revolta da Chibata.

Esse não é um passado que já não ressoa no presente: em 2023, mais de cem anos após a revolta liderada pelo almirante negro contra as chibatadas, o entregador Max Ângelo dos Santos foi agredido com uma coleira de cachorro por uma mulher branca na zona Sul do Rio de Janeiro. Heroicizando os oprimidos e relendo a nossa história, a Tuiuti convidou Max para representar João Cândido em seu desfile.

História

A aposta na literatura, nos mitos e na história não constitui novidade na trajetória das escolas de samba. A centenária Portela destacou-se nos anos 1960 e 1970 por apresentar obras da literatura em seus desfiles: Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em 1966, e Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1975, entre outros. As mitologias africanas e dos povos originários foram tema de diversos enredos da Beija-Flor de Nilópolis, como A criação do mundo na tradição nagô, em 1978, e O mundo místico dos caruanas em 1998.

Desde os carnavais realizados sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945), a história do Brasil foi muitas vezes lida e relida nos desfiles. Dos heróis oficiais, como D. João VI e Duque de Caxias, passando por episódios tantas vezes repisados como a guerra contra os holandeses, a independência do Brasil e a guerra do Paraguai, o que mudou ao longo do tempo foi o enfoque da história dos vencedores para a história dos vencidos, dos oprimidos, dos grupos que lutam por emancipação.

Isso desde os históricos enredos do Salgueiro, que imprimiram protagonismo aos personagens e às lutas afro-brasileiras, como Navio Negreiro, em 1957, e Quilombo dos Palmares, em 1960, até o desfile questionador da Mangueira em 2019, quando a escola apresentou a “história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”.