Cultura não é de esquerda e nem de direita: temos de buscar o consenso, afirma Fabrício Noronha, secretário de Cultura do ES

Feb 22, 2024 at 1:30 PM

Alvo da extrema-direita e da polarização dos últimos anos, o setor cultural sofre até hoje o desgaste da guerra no continente digital, num cenário ininteligívelregido por verdades absolutas simplistas e entendimentos equivocados acerca de projetos importantes como a Lei Rouanet.

Cultura não é de esquerda e nem de direita: temos de buscar o consenso, afirma Fabrício Noronha, secretário de Cultura do ES

O secretário de Cultura do Espírito Santo e presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais da área, Fabrício Noronha,viveu (e vive) a experiência de ser gestor culturalsob esses ataques: durante a pandemia da Covid-19 e diante de um governo extremo que não acreditava no setor como ativo relevante para a sociedade.

Mesmo assim, Noronha adverte “que não é tão real o fato de a Cultura ser só de esquerda”. “Nós tivemos essa percepção na própria pandemia, que revelou uma força de trabalho muito grande. No momento que apertou, a gente começou a ver que o conjunto da sociedade é que faz e constrói a Cultura. É a galera toda”, diz.

No Espírito Santo, como secretário Fabrício liderou avanços importantes para o Estado, como o aumento do investimento no tradicional edital daSecretaria de Estado da Cultura (Secult-ES), a implantação da Lei de Incentivo Estadual de Cultura, o desenvolvimento de projetos como o Cultura em Toda Parte, a retomada das obras do Cais das Artese mais.

Mas reconhece que há muito a ser alcançado, no ES e no país. O Fórum que preside, por exemplo, além de debates e articulações políticas, não conseguiu sair tanto (nem o Ministério da Cultura e Congresso, claro) das vitórias emergenciais das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc.

A extensão desta segunda medida, mais focada na música, é uma promessa: tornou-se Política Nacional Aldir Blanc, foi anunciada pela ministra Margareth Menezes, mas ainda não vingou. Aexpectativa era o repasse do investimento federal de R$ 3 bilhões por ano, durante cinco anos, a estados, distrito federal e municípios a partir de 2023, o que não aconteceu. Segundo Fabrício Noronha, para o ES serão R$ 30 milhões anuais, mas “ainda não há grana, só a ideia”.

O Ministério da Cultura nem sequer tem, até este momento, um cronograma de repasse financeiro da nova Lei Aldir Blanc.

Em relação à regulação do streaming, o debate mais promissor é no âmbito do audiovisual. Há dois projetos em tramitação no Congresso que, Segundo Fabrício, são o foco do Fórum Nacional e do Ministério da Cultura, com “expectativa de aprovação ainda este ano. No caso da música, o enfrentamento às plataformas digitais para a mudança de remuneração dos compositores, por exemplo, mal está no radar.

Mas Fabrício, nesta entrevista para a coluna, se diz otimista. E acredita num momento de transição para a Cultura que pode ser histórico. Lei o bate-papo completo abaixo:

Felipe Izar: Ainda há muita dificuldade de se compreender no mercado o tamanho do poder econômico da Cultura para o país. Como tem debatido o assunto como secretário e também presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes?

Fabrício Noronha: Os números demonstram esse poder econômico. Tem um estudo recente do Observatório Itaú Cultural que aponta mais de 7milhões de trabalhadores da Cultura e 3,11% do PIB, para se ter ideia do tamanho do mercado. Está encostado ali no da construção civil. Ao mesmo tempo, a gente não consegue ter isso refletido de forma relevante na sociedade. Fica sempre uma coisa que tem até a ver com o processo da Culturanos últimos anos, no centro dessa ascensão da extrema-direita no Brasil. No processo de ataque à Lei Rouanet ou em narrativas como a da mamata...isso acabou desgastando e dificultando a percepção pública em relação ao próprio investimento em Cultura. Mas não há dúvida: olhando para esses dados, a gente consegue perceber como o investimento retorna em geração de emprego, em desenvolvimento regional. Um exemplo é Santa Teresa (ES), cidade que abriga um festival de jazz que transforma uma rede hoteleira, uma rede gastronômica. O que gera interesse para as pessoas visitarem e se deslocarem a um município são os ativos naturais, ativos do patrimônio cultural, material e imaterial, e os ativos da Cultura, com eventos e outros investimentos. Aqui no Espírito Santo nós estamos avançando no apoio à área. A gente não tinha uma Lei de Incentivo à Cultura de ICMS; e isso é quase o básico para você ter um processo de profissionalização do setor. Isso possibilita uma engrenagem com mão de obra, execução de projetos maiores, mais oportunidades de palco. Umatendência interessante no mercado é o investimento privado na Cultura por meio da Lei Rouanet.

O festival Delírio Tropical, no verão de Vila Velha, foi um exemplo desse investimento privado?

Foi.  É um exemplo dessa dinâmica. Você consegue colocar um evento em um super espaço, com apoio da prefeitura, mas com recursos federais. Pela Lei de Incentivo a gente tem feito coisas assim, como a festa da Sanfona e da Viola no interior. São arranjos novos que estão possibilitando o amadurecimento desse setor, geração de emprego e renda. Todo esse processo incentiva também as empresas, que entendem a oportunidade de apoiar trabalhos e fortalecer suas marcas. Por exemplo, todo esse debate sobre ESG (sustentabilidade ambiental, social e governança corporativa), sobre a parte social… a Cultura tem as ferramentas para esses posicionamentos das empresas.

Por falar no cenário da expansão da extrema-direita, como é ser gestor cultural neste universo polarizado? É preciso sair da bolha, mesmo que talvez a Cultura esteja mais ligada à esquerda naturalmente

Vamos lá. algumas verdades, começando pela colocação do final, a coisa de ser todo mundo de esquerda, que não são tão assim, na real. E a gente conseguiu ver isso na pandemia, que revelou uma força de trabalho muito grande. No momento que apertou, a gente começou a ver que quem faz a cultura e a constrói é o conjunto da sociedade. Por mais que exista essa imagem e certa predisposição, assim como na universidade, para a esquerda, é a galera toda. A gente precisou ter essa frente mais ampla na pandemia. E o nosso Fórum Nacional foi muito importante nesse processo político todo, por ser uma representação de secretarias de estados de governos das mais diferentes matizes políticas.  Nesse momento a gente conseguiu estabelecer um diálogo, mesmo sem Ministério da Cultura (governo Bolsonaro). Mas, como você disse, a sociedade continua polarizada, e temos trabalhado muito a convergência de pautas, aquelas de interesse do setor cultural e, no final das contas, da população. Temos conseguido colaborar com os debates, em conversas com as lideranças, com o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, com Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados. Conseguimos desatar alguns nós do processo Legislativo, como a ampliação do prazo da Lei Paulo Gustavo. Agora a gente entra no processo de aprovação da regulação do streaming, que tem até a ver com a soberania nacional do país. E não são pautas de esquerda ou de direita. A gente utiliza muito da prerrogativa do Fórum para conseguir esse consenso.

Sobre a Lei Paulo Gustavo e a Aldir Blanc, vi que o Fórum se apoiou muito nelas em 2023. Mas são editais emergenciais da pandemia e há um consenso entre especialistas que editais não são políticas públicas. Está faltando avançar nesse sentido?

Sim. A Lei Aldir Blanc vem como uma resposta muito importante no momento de ausência desse governo central (Bolsonaro no poder). O contexto da pergunta é um grande exercício de um debate muito antigo no setor cultural sobre o Sistema Nacional da Cultura, que seria o SUS da Cultura. Se naquele momento (da pandemia) nós tivéssemos um sistema municipal, estadual e federal de troca de recursos via fundo a gente não teria necessidade da Aldir Blanc e nem da Paulo Gustavo. A gente iria irrigar de maneira excepcional esse sistema, assim como fez a saúde. Imagina a gente ter enfrentado a pandemia sem o SUS? Mas o mais interessante nesse processo todo, que tem a ver com a essência do que você perguntou, é aquela Lei que a gente chamou de Aldir Blanc 2 e que agora é a Política Nacional Aldir Blanc. Se trata da transferência continuada de recursos: uma Lei Aldir Blanc todo ano sem uma perspectiva emergencial, mas sim com umaperspectiva de construção de irrigação desse sistema. Sistema que já está construído conceitualmente, mas, sem a grana, é só uma ideia. Seria uma perspectiva permanente e de enraizamento. O edital, de fato, não é o final desse processo: é um elemento dentro de uma cadeiamuito mais complexa. Hoje o nosso grande debate é a diversificação dos mecanismos. Temos de pensar em outras formas de acesso a recurso. Nossa grande agenda é diversificar esses mecanismos e estabelecer os papéis dos governos federal, estadual e municipal dentro da área. Mas essa virada também depende de uma compreensão do setor cultural. Ao mesmo tempo em que a gente fala sobre diversificação de mecanismos e os editais são muito criticados por serem um processo meritocrático no qual há ranqueamento e projetos incríveis que podem ficar de fora -, estabelecer essas mudanças de médio e longo prazo podem gerar também certas resistências. Porque são avanços menos diretos do que ter R$ 30, R$ 40 mil para fazer tal projeto. Vamos imaginar, por exemplo, construir uma escola de formação audiovisual. é uma coisa muito mais difusa. Então a gente precisa também estabelecer que nós estamos entrando em uma outra fase; que essa fase emergencial ficou no período da pandemia e que agora a gente precisa aproveitar esses R$ 3 bilhões anuais da Política Nacional Aldir Blanc, por exemplo, para enraizar uma política de Cultura.

A regulação do streaming, um dos grandes desafios destes tempos, está avançada?

Temos hoje dois projetos, um na Câmara (PL 8889/2017) e outro no Senado (PL 2331/2022) em tramitação hoje. Existe o desejo do setor cultural e do Ministério muto grande para que nós tenhamos ainda este ano essa regulação. Boa parte da Lei Paulo Gustavo está sendo investida em produção: filmes, documentários, séries. E essa produção precisa escoar, num cenário em que as plataformas de streaming são os principais canais de acesso. E hoje a gente tem pouquíssimo conteúdo independente nas telas. Ao mesmo tempo, estamos lidando com grandes conglomerados nacionais; e isso não é fácil. Mas contamos com o bom senso dos legisladores. O setor audiovisual é muito importante para a Cultura.

No caso da música, há algum debate no radar para regulação do streaming, de enfrentamento às plataformas?

Tem outro debate em relação às plataformas de música. Mas a discussão mais forte hoje é sobre o audiovisual, projetos que já estão na pauta há mais de sete anos.

Acha que os músicos, enquanto classe, estão aproveitando o momento para reivindicar e aproveitar que temos uma ministra da área?

Difícil avaliar dessa maneira. Acho que a Funarte (Fundação Nacional de Artes) tem olhado com bastante atenção o assunto. É um processo muito recente do Ministério, tudo foi muito destruído. É difícil avaliar. Neste momento, acho que muita coisa está por vir e o setor da música está atento. A oportunidade da Lei Aldir Blanc é muito importante para a música. A gente consegue olhar para um futuro promissor. Aqui no Espírito Santo teremos R$ 30 milhões por ano, nos próximos anos, e podemos planejar, caminhar. Temos a oportunidade histórica de trabalhar o que a Funarte chama de uma política nacional das artes.

O senhor participou da frente ampla da campanha de Lula, movimento forte de artistas contra Bolsonaro. Como foi aquele momento e, afinal, foi você que trouxe Caetano Veloso para declarar apoio ao governador Renato Casagrande?

A gente tem um grupo muito forte de artistas, produtores, articuladores que pensam política, constroem e apoiam candidaturas. Estamos o tempo todo articulando pautas e avanços nesse sentido. No caso do Caetano, ele veio aqui para se apresentar e, um dia antes do show, a gente fez um jantar. Eu tenho uma relação com ele e com a Paula (Lavigne) de muito tempo. E foi ali no jantar que ele declarou aquele apoio.

Por sua forte inserção na política nos últimos anos, vai se candidatar?

Hoje, não. Não tenho essa pretensão. Quero seguir aqui com o trabalho, temos muitas integras para fazer, como o Cais das Artes, que tem sido uma de nossas prioridades.