Tom Maior adapta história de amor de Orfeu e Eurídice para a cultura tupi-guarani

Feb 1, 2024 at 10:15 PM

Todo ano depois do carnaval, quando entra no período de férias, o carnavalesco Flávio Campello se debruça de maneira particular sobre a obra de algum poeta. Ao escolher mergulhar na poesia de Vinicius Moraes depois do último desfile, ele mal sabia que sairia dali a ideia para o próximo desfile da Tom Maior: “Acabei me deparando com o álbum Orfeu da Conceição. Vinicius teve a genialidade de levar esse mito pro carnaval, pro morro carioca. E eu pensei: o mito nasceu na Europa, veio pro Brasil com essa roupagem sambística, da nossa cultura… falta agora a gente transformar isso em algo da nossa raiz”, lembra.

Foi assim que surgiu “Aysú: uma história de amor”, enredo da Tom Maior para 2024. Se em 1954 o poetinha Vinicius de Moraes pegou o mito de Orfeu e resolveu contar a mesma história no contexto do carnaval do Rio de Janeiro, agora Flávio Campello fará a mesma coisa com a cultura tupi-guarani: “A impressão que a gente tem é que todas as mitologias do mundo se conversam”, brinca Flávio.

“Todas têm as divindades atreladas à elementos da natureza. Então buscar na mitologia tupi essas representações que existem no mito de Orfeu e Eurídice foi fácil. Por exemplo: no mito grego, uma víbora pica Eurídice. No mito tupi, temos a boiúna, que é uma cobra grande de uma lenda famosíssima. Então a gente transformou a víbora em boiúna”, explica o carnavalesco. Aqui, então, não falamos mais de Orfeu e Eurídice, mas sim de Abaeté e Anahí; o protagonista toca não uma lira, mas sim uma flauta; e tudo acontece no meio da floresta.

A abertura do desfile da Tom Maior vai representar o encontro entre Grécia, Vinicius de Moraes e a cultura dos povos originários brasileiros. Um encontro, aliás, cheio de coincidências. O Orfeu original tocava uma lira como aquela que está no pavilhão da Tom Maior; a ópera italiana que popularizou essa história na Europa, de autoria de Claudio Monteverdi, estreou no carnaval de 1607; e Vinicius de Moraes, quando escolheu levar esse roteiro para o Rio de Janeiro, decidiu que o período ideal para o desenrolar desse drama seria o carnaval.

A peça de teatro virou filme ainda em 1959: “Orfeu Negro” foi uma coprodução entre Brasil, Itália e França, com atores brasileiros e direção do francês Albert Camus. A película ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e, muitos anos mais tarde, um remake estrelado por Toni Garrido em 1999. Um ano antes a Unidos do Viradouro havia contado essa mesma história na Marquês de Sapucaí.

A construção narrativa segue a lógica da história grega, mas a estética estará 100% associada à cultura dos povos originários do Brasil:

“Nós estampamos nas fantasias os grafismos dos povos originários. Fazemos uma pesquisa muito densa pra tentar representa-los de forma respeitosa já que as pinturas corporais tem uma simbologia. Fomos atrás disso pra saber o que representava cada coisa”, conta Flávio.

Nas penas artificiais, a Tom Maior trará estampas com desenhos de penas utilizadas por grupos de povos originários. Da mesma forma, a linguagem do enredo e do samba investe no vocabulário tupi: “amor” vira “aysú”; “coração” vira “mangará”; o planeta Terra vira “yby”; e assim a história vai sendo contada.

Abaeté e Anahí vivem a sua história de amor até a boiúna lançar a jovem no abismo da saudade. Abaeté recebe a permissão do deus Tupã para ir até lá tentar resgatá-la e negocia não com Hades e Perséfone, mas sim com Ticê e Anhangá. Eles aceitam libertá-la desde que Abaeté não olhasse pra trás, mas ele desconfia, quebra

a promessa e perde Anahí para sempre – como no mito original: “Adotamos uma paleta de cores e fisionomias de esculturas que permitem ao público captar quando é um momento feliz e quando é um momento mais dramático. Nesse momento mais triste, temos muito fogo, muita labareda. Estamos apostando muito nessa alegoria. As pessoas vão sofrer com esse momento”, promete Campello. As personagens Abaeté e Anahí vão aparecer várias vezes ao longo do desfile.

No mito original, a história acaba na desilusão de Orfeu. No desfile da Tom Maior, a liberdade criativa do carnaval escreverá um novo final. No enredo criado por Flávio Campello, a flauta de Abaeté é quem mantém o mundo em harmonia. Quando perde Anahí, ele deixa de tocar o instrumento e o mundo mergulha num ciclo de caos e destruição. Então Monã, o grande deus criador para os tupis, faz a ele uma proposta: se ele voltar a tocar, ganhará o direito de viver para sempre no Ybimarã, uma terra sem mazelas, ao lado de Anahí. É assim que Campello resolve o que chama de “único problema” do mito grego: “A gente proporciona um final feliz que é merecidíssimo. É aquele ‘viveram felizes para sempre’”.

A Tom Maior será a segunda escola a desfilar no sábado de carnaval.