Depois de 22 desfiles, finalmente no Carnaval de 2024 a ainda jovem Dragões da Real vai apresentar o primeiro enredo africano de sua história. A demora pode ser incomum dado o apreço da maioria das escolas por enredos que mergulham na cultura deste continente, mas será compensada com a tentativa de promover um resgate histórico de um legado que a história contada a partir das invasões europeias muitas vezes ignora: “Parece que a África nasceu há 200 anos apenas, mas não é. A África foi contemplada com inúmeras riquezas não só naturais mas também culturais e espirituais. Houve esse apagamento histórico pra mostrar apenas o que eles queriam que fosse mostrado”, analisa o carnavalesco Jorge Freitas.
Jorge, então, escolheu falar sobre reis e rainhas que construíram uma África rica e politicamente organizada no período anterior às invasões europeias. Para criar uma imagem poética que encadeasse essa premissa, ele foi buscar um mito propagado pelos povos dogons, que há mais de mil anos habitam uma região que hoje corresponde ao território do Mali. Conta esse mito que quando um rei morre, ele vira uma estrela. Por isso, o enredo “África – Uma constelação de reis e rainhas” vai começar com esse coletivo de estrelas baixando na avenida: “Dentro de um portal, teremos os dogons, que são a materialidade que está na Terra, encontrando a espiritualidade dos reis e rainhas que são contemplados como essa grande constelação”, explica o carnavalesco. Jorge já venceu o carnaval por Gaviões da Fiel, Rosas de Ouro, Império de Casa Verde e Mancha Verde e vai para o segundo desfile seguido na Dragões da Real, que ainda busca o seu primeiro título.
Quem frequenta o universo do samba de São Paulo sabe bem que a Dragões não é uma agremiação com raízes africanas e nem tampouco vem de uma majoritariamente comunidade negra como a de escolas mais tradicionais como o Camisa Verde e Branco, o Vai-Vai ou a Nenê de Vila Matilde. Simone Sampaio, que já foi rainha de bateria e hoje é a madrinha da Dragões, é um dos maiores ícones pretos da história da escola e elogia o trabalho de pesquisa do enredo: “Nunca se viu tanta preocupação em seguir a história. É preciso desconstruir a história que foi contada. É preciso que tenhamos uma verdadeira história além dos navios negreiros e é isso que a Dragões vai falar. Eu mesmo não tinha noção da minha verdadeira origem”, conta. Para que o enredo transforme o olhar das pessoas para além do desfile, a Dragões realizou palestras e exposições ao longo do ano para que seus componentes fizessem uma imersão no tema apresentado.
Simone observa ainda que muitas coisas que serão mostradas na avenida passaram à margem inclusive do sistema educacional: “Eu não lembro de ter ouvido na escola que o homem mais rico da história da humanidade foi um homem negro chamado Mansa Musa (líder do Império do Mali no século XIV que será apresentado como exemplo de generosidade). A gente fala muito de Cleópatra e só recentemente quando fui ao Egito eu vi a minha herança negra lá”, exemplifica. Ela classifica a Dragões como aliada na luta pela construção de uma narrativa potente para os negros: “É muito importante entender o seu lugar de fala. Todos temos um. Uns do seu lugar de não privilégio e outros entendendo os seus privilégios entro da sociedade. É juntos que nós vamos desconstruir, educar e fazer um grande carnaval com responsabilidade, luxo e alegria”, promete. Alegria, aliás, está no lema da agremiação que se diz um “lugar de gente feliz”.
No que diz respeito à construção narrativa do enredo, depois da abertura baseada no mito dogon, o carnavalesco Jorge Freitas não segue uma lógica cronológica ou geográfica. Ele dividiu líderes de reinos e impérios de milhares de anos a partir de suas características. Primeiro, com um setor para os líderes das virtudes como o já citado Mansa Musa; Tenkamenin, o rei da Justiça de Gana (entre 1037 e 1075); Moshoeshoe, o rei da sabedoria do Basotho (hoje Lesotho, entre 1518 e 1568); e Shamba Bolongongo, o rei da paz do Congo (entre 1600 e 1620).
Depois virão os líderes guerreiros como por exemplo Sunni Ali Ber, de Songhay (hoje Mali, entre 1464 e 1492); o desafiador Tahrqa, de Núbia (hoje Sudão, entre 690 e 664 a.C.); Samoury Touré, o “Napoleão negro” do Sudão (entre 1830 e 1900); e Menelik II, o “rei dos reis” da Abissínia (hoje Etiópia, entre 1844 e 1913).
Por fim virão os líderes expansionistas que levaram a cultura africana para outros lugares como fizeram Sundiata Keita, “o rei leão” do Mali (entre 1235 e 1255); Osei Tutu, fundador do Império Ashanti (hoje Gana, entre 1680 e 1717); o Rei Shaka dos zulus (do sul africano entre 1818 e 1848); e o rei comerciante Ezana, de Axum (hoje Etiópia, entre 333 e 350 d.C.).
Para localizar os espectadores, o carnavalesco Jorge Freitas aposta em uma representação fiel das vestimentas de cada um desses reis: “Eu apenas carnavalizei um pouco. Mas até com os tecidos eu tive a preocupação de procurar estampas da época em que se passa a narrativa do rei que eu quero apresentar”, promete.
Enquanto as fantasias vão falar dos homens, os carros alegóricos são todos sobre rainhas. Um deles, por exemplo, é sobre as faraós mulheres do Egito. Uma história que a Dragões quer contar com mais profundidade do que os batidos clichês que apresentam Cleópatra (que governou de 50 a 31 a.C.) como um símbolo de beleza e sedução: “Elas tinham também uma questão política com um discurso muito forte. Houve inclusive um apagamento da primeira faraó pra logo colocarem um homem. Eles próprios fizeram um apagamento da questão feminina. Por isso nosso samba diz ‘poder além da sedução’. É muito maior do que isso”, acredita o carnavalesco. A personagem citada por ele foi Hathepsut, que foi faraó no século XV a.C.. A Dragões trará ainda carros alegóricos que falaram sobre a rainha Jinga, que defendeu o reino de Matamba (hoje Angola) das invasões portuguesas entre 1631 e 1663; e também sobre a Rainha de Sabá, do leste africano, cujo período de governo ronda o século X a.C..
Com tudo isso, a escola quer evocar o espírito desses guerreiros para fazer história no Anhembi: “Chamando todos para virem participar dessa grande kizomba, que é a festa africana que nós queremos fazer na avenida”, convida Jorge Freitas.